segunda-feira, 29 de março de 2010

Ghost in the machine



A certo ponto, e na sequência de uma invasão de um encontro de scanners por homens de Revok que acaba num abrupto incêndio e consequente fuga, a personagem interpretada por Jennifer O'Neill apresenta uma expressão absolutamente ausente e perturbada. A personagem encontrava-se a meio de um scan e, quando chamada à realidade, profere "Agora eu sei qual é a sensação de morrer". Refiro-me portanto ao filme "Scanners" de David Cronenberg. E este momento acaba por ter um significado de rotura, na medida em que os scanners são colocados num contexto inegavelmente antropológico: estes seres possuem, afinal, sentimentos e emoções que transcendem as suas capacidades neurológicas e telepáticas. Pois que esta fusão máquina-humano não é propriamente inédita na filmografia do realizador canadiano (posteriormente em Videodrome onde sinais de televisão viriam a estar em sintonia com corpos, entre muitos outros casos). A questão está na abordagem, que aqui se encontra intrínseca à genese humana e que com ela vive pacificamente. De certa forma, existe alguma utopia na visão de Cronenberg, de aproximação quase íntima do Humano à Maquinaria, mas o realizador não está particularmente interessado em apregoar as vantagens disto: consequências devastadoras são desde cedo concretizadas e o limiar entre as duas entidades torna-se o território de exploração de Cronenberg.

Nota: Dentro deste contexto, e para uma abordagem bastante diferente, e impossível não referir o primeiro tomo de "Ghost in the Shell".

sexta-feira, 26 de março de 2010

É bom ver-te sem as correntes, Ricardus.

Impus a mim mesmo uma espécie de auto-controlo relativamente a informação relacionada com a série LOST quando criei este espaço. Bem sei que, podendo, todas as quartas-feiras existiria pano-para-mangas para muitas linhas sobre este assunto, mas a verdade é que existem outras coisas a serem igualmente tratadas. Quebro esse silêncio para falar sobre o episódio desta semana, "Ab Aeterno", sendo estas palavras dirigidas apenas aos espectadores regulares desta série (existem spoilers sobre o episódio em questão a seguir à imagem).




Uma concepção bastante simples de Bem e de Mal com a Ilha no seu epicentro. Será?


Richard era, até esta semana, uma das figuras mais intrigantes da mitologia de LOST: um indivíduo que aparentemente não envelhece, que se encontrava na Ilha antes da Iniciativa Dharma e que era intermediário de Jacob perante os indíviduos do Templo (entre outros). Assim, um episódio centrado na sua figura era um dos marcos mais antecipados desta derradeira temporada. E a verdade é que tudo é concretizado: mas vamos por partes.

Em primeiro lugar, temos a tragédia grega mais uma vez ensaiada no amor entre Richard e Isabella. Este ponto fulcral acaba por ser o epicentro de todo o "Destino" de Richard: a busca pela redenção através da fé surgiu muitas vezes representada na série, mas talvez nunca de forma tão desesperante e desorientadora. Contudo, a redenção acaba por ser aparentemente encontrada no encontro com Jacob (mais tarde no episódio descobrimos que isto não é tão linear quanto isso). A cena de reencontro do casal no limiar vida/morte (com Hurley como intermediário) é absolutamente desarmante.

Em segundo, há a consagração da mitologia de uma série sem paralelo. Todo o episódio é constituído por referências e paralelismos a elementos regularmente abordados em LOST, bem como aos mais distantes. Pois que, neste momento, se começa a ter uma percepção um pouco mais concreta da globalidade destes elementos que nos têm vindo a ser apresentados desde o episódio-piloto, sendo constantemente reinventados nas mais adversas condições.

Por último, a introdução física ao conflito Jacob/Esau (Esau designa, em termos práticos, o indíviduo de negro). Ainda que os últimos dez episódios tenham girado em torno desta disputa, na realidade escassas vezes tinhamos assistido à materialização deste conflito omnipresente. A trama ganha uma forma absolutamente nuclear mais uma vez e o que a coloca nesta posição é precisamente este dilema tão típico da série: em que facções residem, realmente, o Bem e o Mal? Esta situação tem sido miraculosamente tratada com imparcialidade até à data, transportando estas concepções para julgamentos morais formulados por Jacob e Esau, mas a verdade é que estes parecem ter o mesmo valor de verdade de os de um qualquer mortal.

Assim, parece-me estar encontrada a segunda obra-prima desta sexta temporada, precedida por "Sundown", claro está.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Vertigem



A narrativa de "Vertigo", obra-prima de Alfred Hitchcock estreada em 1958, é em si cheia de peculiaridades e detalhes. Existe, pois, a história do detective Scottie contratado para vigiar Madeleine, pela qual acaba por nutrir certos fortes sentimentos. No entanto, com a saída de Madeleine de cena, é possível constatar a possibilidade de análise das várias camadas desta trama, para momentos a seguir sermos surpreendidos por uma nova aparição desta entidade. Mas esta figura, que antes conhecemos enquanto Madeleine, afirma agora chamar-se Judy. Cedo se constata que não ludibria nem o espectador nem o detective Scottie. E esta cadeia causal leva a uma cena absolutamente transcendente: Judy entra no quarto deixando Scottie entrar atrás de si, seguindo para a casa de banho para se preparar para jantar. Scottie senta-se à janela. Iluminada por luzes neon verdes que vêm do exterior, surge agora a figura de Madeleine, que avança até aos braços de Scottie. Não há nada mais revelador do que esta transfiguração e o seu respectivo encaixe nas tais várias camadas de leitura de "Vertigo".

domingo, 21 de março de 2010

E existe

quinta-feira, 18 de março de 2010

Os mestres do nada

"Teen Dream", dos Beach House, é o melhor álbum que ouvi até à data em que escrevo esta mensagem, isto relativamente a música lançada no presente ano. Costuma dizer-se que não há amor como o primeiro (o álbum homónimo), mas neste caso à terceira foi de vez (a devoção veio dos tempos do "Devotion" propriamente dito). Pois que agora os definitivos mensageiros da herança dream-pop para a era moderna mostram que há muitas outras direcções para as quais disparam, sem inconsequência. E, para a maior surpresa, ao vivo a experiência não se resigna minimamente: Victoria Legrand tem, realmente, uma voz maior que o mundo e Alex Scally não se eclipsa na sua sombra. Na verdade, parece-me que a maturação da banda acaba de chegar a um novo expoente: os tons harmónicos gerados pela guitarra de Scally em "Norway" são um dos seus mais fascinantes trabalhos técnicos, por exemplo. Mas não se ficam por aqui: "Silver Soul" é de uma profundidade raramente alcançada, enquanto "Take Care" coloca um novo marco no irrepreensível percurso da dupla: a presença tão iminente do teclado de Legrand raras vezes teve uma simbiose tão forte com a guitarra e a percussão.



Relativamente à noite de ontem no Lux. Ao vivo, e enquanto não estão a tocar, os Beach House parecem ser os tipos mais porreiros do mundo: Legrand na sua lisonjeada postura ao receber o mais diverso tipo de declarações de afecto e Scally na sua divertida ironia, debitando promessas de amor eterno ao público português. E o público português são o tipo de espectadores que os começam a conhecer bastante bem: as investidas em "Gila" e "Heart of Chambers" (do álbum "Devotion") foram recebidas com grande euforia, mas também temas-chave do novo álbum tiveram semelhante recepção. De resto, a reter o apoteótico final com "10 Mile Stereo", a comprovar novamente a potencialidade de uma banda cujo crescimento tem sido das coisas mais interessantes de seguir dos últimos tempos. Dream-pop is not dead.


Alinhamento (repare-se que só faltou "Real Love" para que "Teen Dream" fosse tocado na íntegra):

Walk In the Park
Lover of Mine
Gila
Better Times
Norway
Silver Soul
Master of None
Used to Be
Zebra
Heart of Chambers
Take Care

Astronaut
10 Mile Stereo

terça-feira, 16 de março de 2010

Eles são uma banda americana.



Não existe banda mais versátil do que os Yo La Tengo. Não existe banda que tão depressa vá encontrar universos de referências no pós-punk e no shoegaze como nas melodias mais primaveris de uns Belle and Sebastian. Na verdade, esta é uma banda que "pode ser quem muito bem quiser", como se dizia no Ipsilon há dias atrás. Não me refiro somente à versatilidade técnica (a troca de instrumentos é uma constante nos concertos da banda), mas antes a como se faz a transição entre momentos como "Nowhere Near" e "False Alarm" com "We're an American Band". Estamos evidentemente na presença de uma banda que tem mais anos de palco do que eu de vida e que não anda propriamente a experimentar combinações de dois a dois com músicas do baú e os temas mais jovens. Num concerto como o do passado Domingo, na Aula Magna (em que uma das cadeiras da fila da frente serviu por momentos de palco a Ira Kaplan), não há como ficar resignado pelo facto de a banda não tocar mais um par de temas que tanto queriamos, pessoalmente, ouvir. Especialmente quando o alinhamento passou por uma versão absolutamente catártica de "More Stars Than There Are in Heaven", um par de minutos absolutamente incendiários de "Sugarcube" ou uma contida quase-nostalgia de "Our Way to Fall". Com isto, Georgia Hubley acaba de entrar para a minha secção de heróis pessoais da música actual e a noite de Domingo para a secção memorável da colecção de bilhetes de actuações ao vivo.



Alinhamento (os momentos mais altos encontram-se convenientemente assinalados a bold):

Periodically Double Or Triple
More Stars Than There Are In Heaven
Pablo and Andrea
Avalon Or Someone Very Similar
Double Dare
Tired Hippo
If It's True
Here To Fall
I'm On My Way
When It's Dark
Nowhere Near
We're an American Band (Grand Funk Railroad)
False Alarm
Nothing To Hide
Sugarcube
The Story of Yo La Tango

Bad Politics (The Dead C)
You Can Have It All (George McCrae)
Our Way to Fall

Can't Seem to Make You Mine (The Seeds)
The Hour Grows Late

sábado, 13 de março de 2010

Reflexões futuras

O novo par de músicas do álbum de um futuro próximo dos MGMT que surgiram na rede esta semana têm tanto de incatalogável como de fascinante. Pois bem, a questão da arquivação (abordada há um post atrás) é um falso problema - e na verdade, neste caso, não é propriamente uma coisa nova, já que a trilogia final de "Oracular Spectacular" possuía estruturas desconstruídas e sonoridades menos ortodoxas no conjunto do trabalho (não menos fascinantes, claro está). Por estas duas amostras não me parece possível prever o que aí venha (a imprevisibilidade está também associada à banda, lembremo-nos), mas pelo menos até à data estamos bastante bem encaminhados.



Como não me alongo relativamente a "Congratulations", essa muito antecipada obra, uso a resignação para voltar a "Oracular Spectacular": mais especificamente a dois temas em concreto, que são eles "Weekend Wars" e "Pieces of What", respectivamente, a faixa 2 e 7 do disco. Dois pedaços de música bastante distintos à partida: a primeira trata-se de um exercício bastante progressivo na sua duração, com uma estrutura um pouco desorientadora, enquanto a segunda é uma canção no sentido mais identificável do termo, com os versos, refrões e outros devidamente emparelhados. Factos. Contudo, penso que existe algo mais a dizer sobre estas duas faixas e a sua ligação, ainda que o alinhamento tenda a negar isto. É que em "Weekend Wars" esta história da resignação perante coisas que foram passando, bem como a constatação de certas incapacidades/conhecimentos, parece-me bastante paralela à contada em "Pieces of What", em que se espera para recolher as peças que fazem as "coisas" voltar à normalidade. Pois bem, estas duas narrativas parecem-me bastante relacionadas. Não quero com isto teorizar que o álbum em questão seja conceptual, mas antes constatar uma certa noção de unidade que existe entre as suas partes e que pode muito bem passar despercebida. Enfim, de volta às weekend wars.

terça-feira, 9 de março de 2010

Os ursos vêm a caminho


"Vai um marshmallow?"

Em situações normais, não me identifico com a utilização de rótulos como forma de catalogação de obras artísticas, independentemente do seu tipo. Compreendo, contudo, a necessidade da sua existência de modo a organizar cronologias a serem escritas enquanto História propriamente dita, assim como compreendo a necessidade do cérebro humano de organizar as coisas por arquivos. É que mesmo na catalogação aparentemente impessoal, há individualidade, levando-nos à redundância de questionar a verdadeira utilidade da organização dos arquivos.

Assim, devo dizer que me parece haver mais a dizer sobre as bandas integradas (voluntariamente ou não) no pós-modernista rótulo de "new-rave" do que parece à partida. Em primeiro lugar foram os Klaxons que chegaram para me assombrar frequentemente as listas de reprodução do iTunes há quase 3 anos ("Gravity's Rainbow" é, segundo me consta o lastfm, a 5ª música mais reproduzida da minha biblioteca desde que ali abri conta); agora são os Late of the Pier. Chegando com quase dois anos de atraso aos meus ouvidos, não é difícil de perceber que existe aqui algo de intrinsecamente geracional (um pouco à semelhança do que acontece com os MGMT) a que se torna muito difícil reagir com indiferença. Não me refiro apenas ao seu forte apelo à descarga energética mais física (quem sabe animalesca) mas também à estrutura das suas faixas: a regeneração ao longo de "The Bears Are Coming" teima em alojar-se nas playlists aleatórias criadas pelo meu cérebro, ao lado de ecos de "Mad Dogs and Englishmen" reverberados com samples de "Broken" (isto querendo evitar os mais óbvios "Space and the Woods" ou "Bathroom Gurgle").

domingo, 7 de março de 2010

Oscars

Não faço apostas para os Oscars este ano. Não me consigo decidir entre os dez filmes nomeados para Melhor Filme, mas parece-me que talvez não seja o "District 9" a levar a estatueta.
A que propósito vem isto? Vem, portanto, no seguimento da década em que "Crash" e "Slumdog Milionaire" foram, nos anos respectivos, considerados os melhores filmes pela Academia.

Sundown



Há cinco anos atrás, começavam a surgir as primeiras teorias que tentavam catalogar de forma muito simplista e redutora os fenómenos que timidamente se iam começando a manifestar na Ilha de "LOST". Uma destas, a mais preguiçosa e pretensiosa diria eu, tratava-se de explicar que os sobreviventes do vôo 815 da Oceanic se encontravam no Purgatório e estavam a ser sujeitos a desafios que iriam ditar o seu destino na eternidade. Bem, se quisermos ver as coisas por um buraco na caixa e não assistir ao cenário fora dela, isto era bastante plausível. Contudo, desde cedo que Damon Lindelof descartou essa ideia, afirmando que o que se passava na Ilha era bastante real e físico para os seus peões. Daí que as audiências tenham descido consideravelmente quando começaram a ser jogadas cartas que apontavam em direcções mais desafiantes e, bem, inteligentes.

Isto tudo para constatar que a ideia do "Purgatório" não está tão longe da realidade como isso, passados cinco anos e alguns meses desde a primeira exibição do episódio-piloto. Na verdade, tudo se resigna novamente a julgamentos morais e à escolha de lados mais ou menos maus. Prova maior disso é o final do episódio da semana passada, "Sundown", em que uma encarnação mais ou menos física do Mal faz a sua aparição e respectivos julgamentos acerca da vontade dos habitantes do ecrã. Afinal estivémos sempre no Purgatório, ainda que isto ganhe uma dimensão mais universal quando começamos a constatar que não é a vida eterna que se avizinha, mas antes o Presente. Ouch.

A agulha no palheiro



Grande dilema se abate sobre mim quando me questiono, ao chegar ao lugar do iTunes onde se encontram reunidos os temas de Elliott Smith, sobre que faixa irei ouvir. Surgem-se, contudo, duas respostas óbvias: "Say Yes" e "Satellite". Entre estas duas hipóteses fico a questionar-me enquanto a lista de reprodução anterior acaba mais um repeat. A verdade é que não sei escolher qual das duas é mais adequada: não há reflexão mais pessoal e pertinente sobre o "estado das coisas" que "Satellite", mas também não existe tema triste algum com a contenção de "Say Yes". Não querendo atribuir ao shuffle a árdua escolha, penso que talvez seja melhor optar por um álbum completo do músico norte-americano, para evitar este tipo de dilema. "Figure 8" parece-me bem. Mas depois existe o "XO". O primeiro parece-me ser o registo mais iluminado de Smith, mas o segundo não se deixa eclipsar na sua amargura. Ter de optar tão injustamente por este tipo de coisas não é simpático. Obrigado, shuffle: "Happiness" parece-me, de facto, uma boa opção.

sábado, 6 de março de 2010

"A Esperança é essa coisa com penas."

Escreveu-nos isto, determinada vez, Emily Dickinson, num poema chamado precisamente "A Esperança é essa coisa com penas". Escreveu também que ela pousa na alma, canta no tom sem ter as palavras e preveniu-nos de que isso nunca pára.
Woody Allen ficou "sem penas" um dia.
 
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